Em primeiro lugar: quem é essa tal de Bernunça? Esta personagem aparece no folguedo do Boi de Mamão lá em Santa Catarina. O Boi de Mamão é a história tradicional do Bumba-meu-boi, mas contada em formato de picadeiro – com personagens diversos aparecendo e dando o ar da graça ao longo da história. A Bernunça é uma bicha papona bagunceira que aparece para, literalmente, comer a criançada na apresentação. Não se sabe muito bem de onde ela vem e porque ela chega, mas o que se sabe é que ela provoca uma bagunça daquelas e, inclusive, está presente em nossas apresentações, onde é sucesso garantido entre as crianças.
Quando entra em cena, a Bernunça provoca duas reações claras a qualquer espectador que esteja assistindo: medo e revolta. O medo vem, principalmente, dos pequenos que se assustam ou não entendem muito bem porque há um bicho tão grande em cena em determinado momento. Ele acontece também porque a Bernunça tem uma boca enorme e, apesar da sua aparência amigável, ela apresenta um tamanho muito maior do que o tamanho da criança, criando a sensação de que há um monstro à sua frente. A revolta já acontece mais com os maiores, pois a bicha papona acaba por ser vista como má para eles e isso gera essa sensação. É através desta sensação que eles expressam todo o seu ódio contra o imaginário que se criou em torno dos bichos papões e colocam para fora esta energia em forma de chutes e socos desferidos contra a coitada da personagem. Mas existe uma terceira sensação que é provocada nas crianças e que é tão importante quanto as outras duas: a curiosidade. Esta curiosidade advém do fato de que existe algo lá dentro da boca dela e ela [a Bernunça] permite às crianças descobrirem. É com este gesto que elas são convidadas a entrarem e investigarem o desconhecido pertencente ao interior daquele bicho.
Mas a grande questão é: e estes sentimentos – medo, revolta e curiosidade – o que podem nos ensinar?
Eles trazem para nós a importância de enfretarmos o desconhecido e podermos descobrir um mundo novo por trás da dúvida. Primeiramente, por aparentar ser um bicho feroz, a criança se recolhe e, muitas vezes, se afasta da criatura. Mas ao se propor à curiosidade de descobrir o que há dentro de sua boca, a criança enfrenta seu medo e bate de frente com a grande questão de sua vida: será este enorme medo fruto da minha imaginação? Este imenso imaginário que se cria em torno dos bichos papões coloca a criança em choque quando encontra de frente um que foge a esta lógica da maldade. Como pode as crianças entrarem e saírem de dentro de sua boca sem estarem feridas, machucadas ou muito menos amendrontadas? E, desta forma, a criança começa a desfazer suas angústias e passa a se entregar de vez à brincadeira, afinal é disto que se trata.